Ana Eugênia Loyolla Hollanders. Tecnologia do Blogger.

... Faça sua busca por aqui

Custom Search

Anúncios

Coma

domingo, 15 de janeiro de 2012

Coma
Enfª Ana Eugênia Loyolla Hollanders


Daniel, 15 anos. Chega a nossa UTI em plena terça-feira de Carnaval (1993 ou 1994, não lembro bem).
Conta que no sábado anterior estava a cheirar um “loló” com seus amigos e sem mais nem menos, passou a não sentir mais os pés. Os dois pés. Não conseguiu andar, caiu.
Foi levado então por seus companheiros de aventuras ao Pronto Socorro, onde foram feitos alguns exames, mas nada foi detectado. Depois de algumas horas tomando soro, mantendo a mesma sensação de não sentir os pés, foi reavaliado e com orientação para observar se os sintomas continuariam, foi liberado. Em cadeira de rodas, voltou para sua casa.
Domingo de Carnaval, em casa, não movia os pés e nem sentia a parte inferior da perna... Como contar a sua mãe ou seu pai sobre o “loló”? Chamou os amigos, que o ajudaram a sair da cama e foram para a rua, nada de sentir as pernas... Nem volta para casa, dorme na casa de um dos colegas, mal fecha os olhos de medo, não sabe o que está acontecendo.
E assim continuou, piorando, a insensibilidade subindo...
Terça-feira, não consegue controlar a vontade de urinar e está ficando com a calça molhada direto. Chama seus amigos e volta ao Pronto Socorro.
Novos exames, testes diferentes, e é encaminhado a nosso serviço, Unidade de Terapia Intensiva (UTI): não controla movimentos da cintura para baixo, ausência de sensibilidade, reflexos ausentes nos membros inferiores.
Fica neste setor em observação e a diminuição de sensibilidade continua progredindo, seguido de abolição de movimentos. Em poucos dias não consegue respirar sozinho.
Mais alguns dias nem abre os olhos.
Todos estamos preocupados com a síndrome apresentada e nunca vista naquele hospital, mas todos estávamos estudando, e o garoto, piorando. Não respirava mais, nem sabíamos se estava acordado, não reagia a nada. Respirador ligado, monitores ligados, fazemos tudo que é possível para manter sua vida, sua integridade corpórea.
Tivemos muitas urgências, pois como não respirava, não tossia, e a secreção pulmonar endurecia no tubo que levava oxigênio ao seu pulmão e o mantinha vivo. Tinhamos que aspirá-lo constantemente para que o ar chegasse ao seu destino sem impedimentos.
Quantas vezes cheguei ao plantão torcendo para que ele estivesse melhor...
Um dia, ao fazer sua higiene oral, percebi que Daniel abriu os olhos, e encarou-me...
Esse foi o primeiro passo de sua melhora, após dois meses conosco. Alegria geral... Comemoramos juntos esse pequeno sinal. Mais um mês e ele recebe alta da UTI.
Quando teve alta do hospital, passou por nosso setor e agradeceu o cuidado que tivemos com ele. Chamou-me em um canto reservado e agradeceu muito minha atenção, o tempo e o cuidado que dediquei. Revelou que o tempo todo esteve consciente, a tudo ouvia. Percebia tudo, mas não conseguia manifestar-se. Agradeceu cada momento.
Percebi que algo o inquietava e perguntei:
-Daniel, o que o incomoda?
Ele responde:
-Ana, nos plantões, eu reconhecia a voz de cada uma das pessoas da equipe, eu conhecia os seus passos, sua voz ao falar bom dia ao chegar, e boa noite ao sair. Ficava seguro quando você estava lá. Preocupado quando você não estava, inseguro, com muito medo.
Perguntei o motivo e ele respondeu:
- Você chegava e perguntava se eu tinha mostrado alguma melhora,  ia imediatamente ver-me, conversava comigo sem saber se eu ouvia, batalhava comigo, brigava por mim com muitos de seus colegas da enfermagem e médicos, percebia quando eu não estava respirando bem... Eu sabia que você não me deixaria morrer.
- E porque vejo ainda a tristeza em seus olhos, Daniel, (estando eu com os olhos cheios de lágrimas de emoção), quer falar mais alguma coisa...
- Ana, enquanto você todo dia perguntava se eu melhorava, alguns de sua equipe perguntavam: Ele ainda está aqui...? Nestes plantões, eu reconhecia a voz de cada uma dessas pessoas, o tom de sua voz ao perguntar me deixava triste, achando que queriam a minha morte. Elas pouco chegavam perto de minha cama, as vezes eu chorava por dentro a noite toda, tremia de medo pensando que alguma coisa poderia dar errado e me perguntava se elas perceberiam, se chamariam alguém pra me salvar. Diga a elas que assim mesmo agradeço, estou vivo, mas...peça que tomem cuidado com o que dizem, pois machuca muito quem não pode gritar para defender-se, e sente a cada instante, que sua vida é um peso para elas carregarem.
Deu-me um abraço apertado e foi embora, andando com certa dificuldade.
Daniel visitou-me por algum tempo, trazendo flores, palavras amigas, ou só passando para mostrar que estava bem... namorando...estudando... O tempo passou... Às vezes o via andando de bicicleta próximo ao hospital com os colegas. Depois de algum tempo, trabalhando (pois estava de uniforme de firma da cidade).
Hoje, deve ser um homem feito... 

Não sei se ainda o reconheceria... mas nunca me esqueço daquele menino e de suas palavras. Relembro-as ao atender cada paciente desacordado e passo-as para frente cada vez que abordo  o paciente em coma, em minha sala de aula (para técnicos em enfermagem).

Dedico esta crônica a você Daniel ! Que suas palavras sirvam sempre para despertar nossa  atenção a cada paciente,  por vezes indefeso, sob nossos cuidados. Que possamos transmitir segurança a cada um deles, estando acordado ou não.


(Em tempo, e para quem quiser estudar: a síndrome que Daniel apresentou chama-se Guillain-Barré.)

2 comentários:

Anônimo,  15 de janeiro de 2012 às 14:03  

lindo adorei.. esse fato vcs nos contou nos primeiros dias de aula e eu nunca mais esqeci....e bom relembrar certas coisas boas já que ao longo vamos perdendo...boa tarde!!

tatiana,  15 de janeiro de 2012 às 17:11  

Ana muito lindo,lembro sempre que vc frisava isso em suas aulas

Postar um comentário

PALAVRAS FINAIS

Que bons ventos te tragam sempre...
e que bons ventos te levem...

mais leve, feliz,

tranquilo e

em paz!

Grande abraço!

Ana Eugênia


FreeWebSubmission.com

  © Blogger template Brownium by Ourblogtemplates.com 2009

Back to TOP