Ana Eugênia Loyolla Hollanders. Tecnologia do Blogger.

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Crônicas Médicas e Hospitalares


Confiança
Enfª Ana Eugênia Loyolla Hollanders

domingo, 5 de fevereiro de 2012



(As crianças sempre nos surpreendem com sua confiança nos pais e nos adultos).

Chegou-nos certa manhã, uma menina, de aproximadamente seis anos, vitima de acidente em escola:
- “A porta foi fechada por um de seus amiguinhos e pegou seu dedo”, contou à professora que a acompanhava.
Descobrimos a mão que estava enrolada em panos limpos, esperando encontrar um corte, mas o que encontramos não foi muito agradável: amputação de falanges (ponta de dedo) do dedo médio e anular.
A criança olhava tudo que fazíamos, e não houve como esconder os toquinhos de dedo que restaram. Mas a corajosa menina não chorava enquanto limpávamos, só observava.
Chega a mãe, que havia sido chamada pela própria professora, e esta, ao ver o que havia acontecido, desmaia.  Chamamos um colega para atender a mãe até que esta estivesse consciente novamente.
Criança avaliada pelo plantonista, chamado ortopedista para decidir o que fazer.
Ao chegar e avaliar a lesão, o ortopedista conversa com a mãe já acordada e chorando, explica a situação dos dedinhos da criança e tratamento a ser adotado e solicita que a criança seja encaminhada ao bloco cirúrgico para fazer um “coto”, pois não havia como reimplantar o pedaço cortado (que a professora havia guardado em um saquinho plástico).
A mãe acompanha a saída da maca com a criança já de camisola, que conversa conosco. E vendo a mãe chorando fala tranquilamente:
- “Mãezinha, não chora não, a professora disse que meu dedinho vai crescer novamente”, e estica, sorrindo, a mãozinha enfaixada para a mãe.

  

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Trauma de Medula  ??
Enfª  Ana Eugênia Loyolla Hollanders

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Onze horas da manhã, sábado, corpo de bombeiros na entrada do pronto socorro, maca sendo encaminhada para a sala de emergência.
Vou atendê-los, já recebendo relatório do caso:
- Trata-se de homem, aproximadamente 38 anos, encontrado caído em via pública, sem comunicar-se ou mover-se desde o momento do chamado. Respiração espontânea, pulsos mantidos, boa oxigenação. Segundo transeuntes, é conhecido nos arredores de onde foi encontrado, onde  várias vezes necessita auxilio por apresentar-se embriagado. Há suspeita de lesão medular, pois apresenta priapismo (ereção continua) desde avaliação inicial. Não percebemos qualquer outro problema...
Direcionamos nossos olhares para a região de entre pernas e realmente havia “grande volume” e o local encontrava-se  ainda úmido por presença de diurese (urina) na roupa.
Caso passado, preenchidos papeis, eles vão embora..
Iniciamos nosso atendimento:  paciente inconsciente, pupilas isocóricas (mesmo tamanho) reagindo á luz, transferido para nossa maca, mantido em prancha rígida para proteção de coluna vertebral, imobilização cervical com colar, solicitado plantonista médico.  Iniciamos com nova aferição de sinais vitais (pressão arterial, pulso, respiração, temperatura), todos dentro dos parâmetros de normalidade, glicemia normal.
Plantonista inicia avaliação médica e ao perceber a presença do priapismo, já solicita localizar neurologista, plantonista da tomografia, preparar para RX  de “corpo inteiro”, exames laboratoriais... Uma grande quantidade de outros cuidados.
Levamos o paciente para RX – tudo normal, aguardamos a chegada do neurologista, paciente mantendo ereção. Médico solicita tentar agilizar a avaliação, pois paciente deve ter lesão medular.
Resolvemos então, limpar o paciente, pois estava em péssimas condições de higiene, antes de puncionarmos uma veia (para instalar soro). Lavamos o  rosto, o cabelo, aproveitando para procurar algum sinal de lesão em couro cabeludo – nada encontrado, retiramos a camisa, lavamos tórax e braços, nada encontramos de lesão ou escoriações.
Preparamos material para cateter urinário ( passar uma sonda para controlar a diurese- urina). Retiramos a calça do paciente e descobrimos o motivo do priapismo...
O paciente havia escondido em sua região genital uma garrafa pet de guaraná caçulinha com aguardente !!
Canceladas chamadas ao neurologista, da tomografia. Foi instalado soro rápido. Depois de algumas horas, paciente acordado e qual não foi sua primeira pergunta ???
- Gente, cadê minha “pinguinha", não a  encontrei onde escondi...

Obs : Nos pacientes com lesão medular, podem ser observadas respiração diafragmática, perda da resposta
ao estímulo doloroso, incapacidade de realizar  movimentos voluntários nos membros, alterações do
controle dos esfíncteres, priapismo e presença de reflexos patológicos (Babinski, Oppenheim), indicando lesão do neurônio motor superior.

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A fé sem obras, é morta !!
           Enfª Ana Eugênia Loyolla Hollanders

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Nos  plantões vivenciamos certos episódios que muitas vezes nem cremos que ocorrem, ou melhor, se pudéssemos intervir, não deixaríamos que acontecessem.
Um senhor, novo, estava aguardando seu atendimento médico, sentado, calado, cabisbaixo na recepção do pronto socorro. Ouvindo seu nome, dirigiu-se ao consultório  médico.
Após aproximadamente 45 minutos, saiu da sala de consulta nervoso, procurando-me para reclamar do atendimento que recebera, pois estava com dor de cabeça intensa e a doutora que o atendeu não passou remédio algum, somente encaminhou para terapia de imposição de mãos.
- Sabe enfermeira, não acredito muito nisso, e gostaria de ser reavaliado por outro plantonista, minha dor esta muito forte, já tomei o que podia de remédio em casa, preciso realmente de atendimento médico que resolva.
Apesar de não ser rotina, apiedei-me deste senhor que apresentava fácies de dor, evitando luz, falando baixo apesar de exaltado. Falei a ele:
- Vou ver o que posso fazer para atender seu pedido, embora tema que a médica que o atendeu perceba que o reencaminhamos. Aguarde em minha sala.
Sai, esperei que a doutora chamasse outro paciente para seu consultório, e levei o senhor à sala de espera do local onde o outro plantonista atendia. Deixei-o lá e fui atender a chamado nas enfermarias de observação.
Após alguns minutos, vejo grande movimentação na área reservada ao consultório dois, onde estava o paciente. Cadeiras da sala de espera sendo jogadas por ele, chutes nas portas, outros pacientes que estavam aguardando correndo... Fui rápido avaliar a situação e tentar contorná-la...
- Senhor, o que está acontecendo aqui... ?   Qual o motivo de sua agressividade... ?

Ele encarou-me com expressão extremamente alterada, fechada e brava e falou...
- Venho aqui para atendimento médico, pois não estou bem.  Se quisesse oração teria ido a igreja .... É o fim do mundo o descaso com a população.  Veja se é possível isto num pronto socorro : um médico me benze e outro me manda benzer...

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Coma
Enfª Ana Eugênia Loyolla Hollanders

domingo, 15 de janeiro de 2012

 
Daniel, 15 anos. Chega a nossa UTI em plena terça-feira de Carnaval (1993 ou 1994, não lembro bem).
Conta que no sábado anterior estava a cheirar um “loló” com seus amigos e sem mais nem menos, passou a não sentir mais os pés. Os dois pés. Não conseguiu andar, caiu.
Foi levado então por seus companheiros de aventuras ao Pronto Socorro, onde foram feitos alguns exames, mas nada foi detectado. Depois de algumas horas tomando soro, mantendo a mesma sensação de não sentir os pés, foi reavaliado e com orientação para observar se os sintomas continuariam, foi liberado. Em cadeira de rodas, voltou para sua casa.
Domingo de Carnaval, em casa, não movia os pés e nem sentia a parte inferior da perna... Como contar a sua mãe ou seu pai sobre o “loló”? Chamou os amigos, que o ajudaram a sair da cama e foram para a rua, nada de sentir as pernas... Nem volta para casa, dorme na casa de um dos colegas, mal fecha os olhos de medo, não sabe o que está acontecendo.
E assim continuou, piorando, a insensibilidade subindo...
Terça-feira, não consegue controlar a vontade de urinar e está ficando com a calça molhada direto. Chama seus amigos e volta ao Pronto Socorro.
Novos exames, testes diferentes, e é encaminhado a nosso serviço, Unidade de Terapia Intensiva (UTI): não controla movimentos da cintura para baixo, ausência de sensibilidade, reflexos ausentes nos membros inferiores.
Fica neste setor em observação e a diminuição de sensibilidade continua progredindo, seguido de abolição de movimentos. Em poucos dias não consegue respirar sozinho.
Mais alguns dias nem abre os olhos.
Todos estamos preocupados com a síndrome apresentada e nunca vista naquele hospital, mas todos estávamos estudando, e o garoto, piorando. Não respirava mais, nem sabíamos se estava acordado, não reagia a nada. Respirador ligado, monitores ligados, fazemos tudo que é possível para manter sua vida, sua integridade corpórea.
Tivemos muitas urgências, pois como não respirava, não tossia, e a secreção pulmonar endurecia no tubo que levava oxigênio ao seu pulmão e o mantinha vivo. Tinhamos que aspirá-lo constantemente para que o ar chegasse ao seu destino sem impedimentos.
Quantas vezes cheguei ao plantão torcendo para que ele estivesse melhor...
Um dia, ao fazer sua higiene oral, percebi que Daniel abriu os olhos, e encarou-me...
Esse foi o primeiro passo de sua melhora, após dois meses conosco. Alegria geral... Comemoramos juntos esse pequeno sinal. Mais um mês e ele recebe alta da UTI.
Quando teve alta do hospital, passou por nosso setor e agradeceu o cuidado que tivemos com ele. Chamou-me em um canto reservado e agradeceu muito minha atenção, o tempo e o cuidado que dediquei. Revelou que o tempo todo esteve consciente, a tudo ouvia. Percebia tudo, mas não conseguia manifestar-se. Agradeceu cada momento.
Percebi que algo o inquietava e perguntei:
-Daniel, o que o incomoda?
Ele responde:
-Ana, nos plantões, eu reconhecia a voz de cada uma das pessoas da equipe, eu conhecia os seus passos, sua voz ao falar bom dia ao chegar, e boa noite ao sair. Ficava seguro quando você estava lá. Preocupado quando você não estava, inseguro, com muito medo.
Perguntei o motivo e ele respondeu:
- Você chegava e perguntava se eu tinha mostrado alguma melhora,  ia imediatamente ver-me, conversava comigo sem saber se eu ouvia, batalhava comigo, brigava por mim com muitos de seus colegas da enfermagem e médicos, percebia quando eu não estava respirando bem... Eu sabia que você não me deixaria morrer.
- E porque vejo ainda a tristeza em seus olhos, Daniel, (estando eu com os olhos cheios de lágrimas de emoção), quer falar mais alguma coisa...
- Ana, enquanto você todo dia perguntava se eu melhorava, alguns de sua equipe perguntavam: Ele ainda está aqui...? Nestes plantões, eu reconhecia a voz de cada uma dessas pessoas, o tom de sua voz ao perguntar me deixava triste, achando que queriam a minha morte. Elas pouco chegavam perto de minha cama, as vezes eu chorava por dentro a noite toda, tremia de medo pensando que alguma coisa poderia dar errado e me perguntava se elas perceberiam, se chamariam alguém pra me salvar. Diga a elas que assim mesmo agradeço, estou vivo, mas...peça que tomem cuidado com o que dizem, pois machuca muito quem não pode gritar para defender-se, e sente a cada instante, que sua vida é um peso para elas carregarem.
Deu-me um abraço apertado e foi embora, andando com certa dificuldade.
Daniel visitou-me por algum tempo, trazendo flores, palavras amigas, ou só passando para mostrar que estava bem... namorando...estudando... O tempo passou... Às vezes o via andando de bicicleta próximo ao hospital com os colegas. Depois de algum tempo, trabalhando (pois estava de uniforme de firma da cidade).
Hoje, deve ser um homem feito... 

Não sei se ainda o reconheceria... mas nunca me esqueço daquele menino e de suas palavras. Relembro-as ao atender cada paciente desacordado e passo-as para frente cada vez que abordo  o paciente em coma, em minha sala de aula (para técnicos em enfermagem).

Dedico esta crônica a você Daniel ! Que suas palavras sirvam sempre para despertar nossa  atenção a cada paciente,  por vezes indefeso, sob nossos cuidados. Que possamos transmitir segurança a cada um deles, estando acordado ou não.


(Em tempo, e para quem quiser estudar: a síndrome que Daniel apresentou chama-se Guillain-Barré.)
 
 
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Essa é de matar...
Enfª Ana Eugenia Loyolla Hollanders


Começo meu plantão no inicio da manhã, sete horas, sempre com muito sono. Durmo pouco durante a noite. Logo temos a primeira correria, paciente não respirando satisfatoriamente, pego no tranco e tenho que trabalhar de verdade.
Punção venosa, soro, exames, sedação para entubação, preparar respirador, material para entubar pronto, aspirador na mão, tubo na mão do médico, procedimentos realizados, administradas medicações, respirador funcionando bem, paciente controlado.
Parece fácil, mas até que a estabilidade fosse alcançada levamos quase duas horas.
Saí da sala de urgência para procurar vaga em UTI (Unidade de Terapia Intensiva) para tentar transferi-lo, (lá se foram mais 2 horas – cadastro, telefone, mais telefone, alterar cadastro, colocar exames...) Opssss, corra, outra urgência: criança queimada.
Mais uma hora até atender, preparar e encaminhá-la ao bloco cirúrgico.
Volta ao pronto socorro e já corro com a maca até a recepção, pois os bombeiros estão com acidentado na viatura e a outra maca está com paciente aparentemente desmaiada, sendo avaliada pelo médico em uma das salas de observação.
Nada grave: paciente apresentando fraturas. Feita avaliação clinica, sem outras alterações, tranqüilo. Tenho agora que localizar o ortopedista e acalmar a família que não entende o plantão á distância.
Aproveito e vejo como está o paciente da sala de urgência para adicionar mais informações (evolução) no sistema para tentar novamente vaga para fora, pois no município não há leitos disponíveis. Novos exames solicitados... Colho os exames... São duas horas da tarde, vou tentar almoçar.
Entrando novamente no plantão após meia hora de pausa, ajudo a levar a maca com paciente supostamente “desmaiada” após avaliação e reavaliação médica para a enfermaria, pois esta não quer acordar embora tenha todos os reflexos mantidos e nenhuma outra alteração detectada. Instalo um soro para manter veia (bem lento!) e saio do quarto.
Atendo alguns pacientes e acompanhantes no corredor, preencho alguns papéis, controlo os débitos nas fichas de medicação, organizo a reposição de medicamentos e  materiais,  e sigo a conferir o sistema (SUSFacil) varias vezes para ver a chance de vaga na UTI. Telefone toca...

... Surgiu uma vaga na cidade. Chamo motorista de plantão para buscar a ambulância e equipamentos de transporte e passo a sala de urgência para preparar o paciente.
Seis horas da tarde, tudo pronto, paciente na ambulância e vou transferi-lo para outro hospital, transferência tranqüila. Retorno para passar o plantão com pouco atraso para minha colega, são 19h30min h.
Corremos os leitos (18) passando os casos (motivo da observação no leito, medicações feitas, intercorrências, orientações médicas) de cada paciente. Chego à senhora “desmaiada”, e assim que relato o que ocorreu no atendimento e avaliação médica desta paciente, a filha que a acompanha pergunta se é grave o estado de sua mãe.
Explico que aparentemente não há nada grave, mas que depois que esta acordar, bastaria pegar a carta de encaminhamento ao serviço de saúde mental para acompanhamento com psicólogo, deixada pelo médico plantonista e estariam liberadas.
Ao terminar estas palavras, a paciente “desmaiada” acorda, e dá um pulo tentando pegar meu braço, sem sucesso, e começa a levantar da cama xingando e dizendo que vai me bater, pois quem sou eu para dizer que ela é “louca”. Neste momento, o outro filho acaba de entrar e não entendendo nada, fica agressivo comigo e com minha colega... Saímos da enfermaria.
A filha sem saber o que fazer tenta segurar a mãe. Já estou longe no corredor quando vejo esta paciente correndo em minha direção dizendo que vai me matar. Tenho que esconder-me em sala próxima para não ser agredida.
O colega médico coloca-se em sua frente, vários funcionários auxiliam a contê-la pois está totalmente descontrolada, gritando, batendo, jogando o que encontra na sua frente ao chão. Fico nesta sala ouvindo o movimento do corredor.
Quando acalma, após algumas medicações, ainda no corredor, ouço o médico falando que esta pode ser levada para casa, pois irá dormir mais um pouco, são quase 21 h agora...
A paciente ainda tenta argumentar : Doutor, não posso pelo menos bater um pouco naquela enfermeira loira antes de ir embora ...
Essa é de matar...

 

 

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Baleado ?
Enfª Ana Eugênia Loyolla Hollanders

Acudam, ajudem, corram... meu colega deu um tiro no pescoço...
Estes gritos se fizeram ouvir em plena recepção do pronto socorro feitos por vozes jovens que adentravam nosso setor de trabalho,  sugerindo que estavam atormentados pela angustia... desespero ...preocupação. Portas se abriam, maca era levada para a porta de entrada...
Corremos a preparar a sala destinada a receber o paciente, enquanto passavam pelas nossas mentes os mais variados quadros de urgência que iríamos atender: soros, compressas para deter sangramentos, material para respiração artificial (ventilação mecânica), e rapidamente estava tudo pronto, equipe com luvas nas mãos. Mas, o paciente não chega...
Mais pensamentos nos inquietam e alguns nem tão otimistas:
- Será que não deu tempo...

Na recepção a desordem imperava, muitos aguardando, crianças correndo. Retorno a esta para tentar organizar e acalmar os colegas da possível vitima quando sou abordada por um dos jovens:
- Vocês não vão atender nosso colega nunca?
Olho bem ao meu redor na sala de espera e percebo que um dos meninos do grupo tem a camisa suja de sangue e as mãos no pescoço, sentado, quieto...
Chamo-o para sentar-se em cadeira de rodas e encaminha-lo ao atendimento medico conduzindo-o a sala de emergência e este ignora a cadeira e vem andando, sem nada dizer.
Ao avaliar o ferimento percebemos realmente dois orifícios característicos de ferimento por arma de fogo (FAF) com porta de entrada de projétil e porta de saída deste, em região de traquéia, mas... Algo estranho acontece... Ele está corado, respirando bem, sem sinais de lesão importante.
Pergunto ao jovem:
- Como foi esse tiro?
Ele responde com certo tom de vergonha:
- Sabe doutora, eu queria me matar de verdade, mas fiquei com medo de machucar muito e fiz assim (esticando a pele do pescoço)...


Naquele momento e do modo como contava a situação eu não sabia se ria, chorava ou ficava brava com o garoto, mas... Realmente, ele deu um tiro no pescoço, e para sua e nossa tranqüilidade, sem colocar em risco a sua vida...
Essas coisas acontecem em um dia de plantão...

 

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Não desmereçam as fábulas, mas...

Enfª Ana Eugênia Loyolla Hollanders

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

(Aplicação da Fábula “Pedro e o Lobo” na Saúde)


  Ouvimos o som de sirene e ambulância parando na rampa de atendimento do Pronto Socorro, e a seguir,  acionado código de urgência para equipe do Pronto Socorro,  era nosso plantão...
Maca na porta, funcionários para auxiliar retirar paciente, mobilizamos vários componentes da equipe para o atendimento: médico, enfermeiro,  técnicos em enfermagem, recepcionista, auxiliar de maca... um paciente que, ao ser retirado da ambulância, estava em franca  crise convulsiva.
Leva-se rapidamente a paciente, mulher jovem, para a sala de urgência, feita transferência para a maca fixa, mantemos sua cabeça voltada para o lado e a protegemos para evitar lesões, preparamos material para puncionar veia, instalar soro para manter acesso venoso e possibilitar administração de medicação,  oxigenação, aspiração...
Sendo feita avaliação médica, paciente aparentemente em crise convulsiva prolongada... inconsciente, contorcendo-se, debatendo-se, boca travada e cheia de saliva , discreta cor azulada ( cianose) em lábios.
Ao comando médico de medicação venosa para cessar a crise, garrote no braço, iniciamos a punção venosa (pegar veia) para administrar a medicação e ... imediatamente, a crise naquele braço cessa...

Nova reavaliação médica, aguardamos comando para continuar medicação e novas ações. Nosso colega, plantonista médico, solicita manter cateter (tubo) nasal de oxigênio e colocar a paciente na cama com grade, observar e suspender medicação, paciente já mais rosada.
Transferimos a paciente de leito, ainda com agitação motora, debatendo-se um pouco menos.
Ao colocarmos na cama, paciente abre os olhos e inicia serie de palavras de baixo calão (xingamentos) dirigindos a nossa equipe, agride funcionária da enfermagem que estava perto de seu leito, levanta-se e xingando ainda, a altos brados, queixando-se do péssimo atendimento, sai do hospital andando,como se nada houvesse ocorrido...
Dois dias depois... ambulância com sirene tocando na rampa... mesmo esquema providenciado... maca, pessoal para retirar o paciente, e encontramos, para nossa surpresa, a paciente do plantão anterior novamente com provável crise convulsiva.
Repete-se todo o processo... sala de urgência, preparo para medicação, avaliação médica e novamente ao garrotearmos o braço, cessa a convulsão... Paciente desta vez fica na sala de urgência, com acompanhante.
Assim que saímos da sala, paciente levanta e sai correndo do pronto socorro, agredindo a todos que encontra em seu caminho...
Alguns dias depois, sirene na rampa,  retiramos a mesma paciente dos dias anteriores desacordada, cianótica, sem reagir a qualquer estimulo, levamos para a urgência, medicamos conforme solicitação médica e aguardamos o neurologista para avaliação desta , pois indicava sinais de alteração neurológica instalada,  estando em estado de coma .
Questionamos ao acompanhante o que ocorreu, e esta referiu que, a paciente apresentou aquele quadro em casa varias vezes naquela semana  sempre depois de discussões familiares, sendo levada a vários serviços de urgência além do que se encontrava agora mas,  nos hospitais sempre voltava ao normal  após alguns momentos de atendimento, principalmente quando ninguém tomava qualquer providencia... cansados de atender a urgência que não parecia real, e da agressividade demonstrada pela paciente nestes momentos, deixaram-na por vezes, debatendo-se, e a crise passava sem  ao menos sair de casa, mas,   desta vez, ela não acordou...

Quanto a  fábula : “ Pedro e o Lobo”
(fábula de Esopo de Sergei Prokofiev)

Conta-nos a história de Pedro, um típico rapaz da cidade, que vai passar as férias na casa do avô, na aldeia.
Entediado com a vida no campo, Pedro decide divertir-se à custa dos aldeãos. Para isso, inventa que viu um lobo perto do rebanho e grita por socorro. Os aldeãos acodem varias vezes, mas afinal é tudo mentira.
O pior é quando o lobo aparece de fato e cumpre a sua natureza, dizimando o rebanho e ferindo Pedro.
É a vez de Pedro demonstrar a sua coragem. Como qualquer outro rapaz da sua idade, compreenderá então, à sua própria custa, a importância de respeitar os outros para ser respeitado e acreditado.

 

 

domingo, 8 de janeiro de 2012

Livre Arbítrio ?



Enfª  Ana Eugênia Loyolla Hollanders

Estava de plantão numa certa noite quando fui chamada por uma das funcionárias de uma  unidades de internação pois,  uma senhora estava passando muito mal e não queria que fosse chamado o médico. Subi ao andar para avaliar a situação...
(Trabalhando em hospitais muitas vezes temos a vida de uma pessoa em nossas mãos, cabendo a nós, da enfermagem, avaliar alterações e tomar  decisões a tempo de salvar  este paciente sob nossos cuidados. Chamar o médico para atender uma intercorrência é fundamental e temos que ter firmeza da necessidade deste chamado, pois muitas vezes solicitamos o plantonista do local de urgências - pronto socorro- para atender nas enfermarias, ficando este descoberto.)
Fui ao quarto desta paciente:  senhora  bem idosa,  rosto marcado pelas muitas dificuldades da vida, face tranqüila, olhos abertos  e serenos, custando respirar, mas  a encontro com um belo sorriso em seus lábios ( já um pouco cianótico  - azulado pela falta de ar), oxigênio sendo administrado em um cateter (tubo) nasal . Pego em sua mão fria, emagrecida, veias aparecendo, tendo um soro ali instalado e converso com ela:
- Boa noite, o que a senhora está sentindo ?
Com frases entrecortadas pela falta de ar, ela responde baixinho:
-Minha filha, não estou nada bem, sei disso, mas não quero que chamem o médico.

Questiono o porquê desta recusa e ela, falando tranquilamente,  mas, com grande dificuldade responde:
- Minha filha, há anos tenho passado muitos dias e noites em hospitais, você vê alguém aqui comigo? Tenho 11 filhos...
(Olhei discretamente o quarto mais uma vez, pois já havia estado ali em vários outros plantões, e não vi, em nenhuma de minhas visitas  algum acompanhante).
... e nenhum deles pode deixar sua casa e ficar aqui. Trabalhei muito minha vida toda lavando roupas para fora, para alimentá-los, vesti-los, dar a eles o estudo que não tive, meu corpo dói quando levanto, quando ando, e agora, quando respiro, está tão difícil... 
Silenciou por breve momento, não tinhamos como  falar  nada, somente escutavamos.
E ela continuou, com dificuldade ainda maior
...Estou sempre sozinha, somente tenho a companhia de Deus e de vocês, anjos que me ajudam... Quero ir com Ele, para os braços d’Ele, estou muito cansada... por favor, não quero mais sofrer, quero descansar, respeitem isso... e fechou os olhos...
Minha funcionária chorava, eu custava segurar as lágrimas...
Deixamos a paciente o mais confortável e aquecida possível. Ela dormia...
Chamamos o plantonista... terminava nosso plantão...
Cheguei no plantão seguinte e não a encontrei em seu leito, o quarto estava vazio...




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Urgência, cólicas...
Enfª Ana Eugênia Loyolla Hollanders

Quatro e meia da tarde, domingo,  urgência... Mulher jovem, obesa,  com cólica abdominal  há mais de 8 horas e piorando, abaixando-se ao andar...
Foi colocada deitada no leito, avaliamos sinais vitais ( pressão, pulso, respiração, temperatura), abdome extremamente endurecido. Dores piorando drasticamente, mal  permite que seja avaliada sua barriga. Chamem o médico...
Questionamos queixa inicial e a menina somente refere ter engordado muito nos últimos meses e que há pouco tempo as dores apareceram, esporádicas, vinham algumas vezes e sumiam. Pioraram nos últimos dias e hoje, dói muito. Nunca teve isso antes.
Plantonista chega, paciente mais calma, deixa avaliar sua barriga, que ... Mexe , chuta!
Preparar para  o parto pois a bolsa acaba de romper e a criança vai nascer, a dor... vai acabar  !!  Chamem o Pediatra.
Um grito,  corre daqui, outro grito , corre dali, pega um material, outro, mesa  pronta,  luva na mão, aspirador, pediatra chegando. Atenção, criança nascendo. Apareceu... O choro da vida... nasceu...menina... perfeita. Pediatra na sala. Mãe e criança bem. Parto mais que normal, todos felizes. Começamos a organizar a sala, mas... as dores voltaram...


Tem mais um... parto gemelar ( gêmeos), força, força... logo vai nascer.... força... respira fundo, segura... segura, empurra, empurra...
Vamos mãezinha, só mais um pouco e terá outro bebê... força... Está chegando... continua, só mais uma força comprida, força, não para... falta pouco...
Vai nascer, força, força compriiiiiida, vamos, não para...
Nasceu...

Vamos criança, chora... menino é mais complicado...
Chorou !!!

Está ficando rosado!  Preparem o berço aquecido, crianças pequenas, levem ao berçário.
Sala organizada.
Mãe aparentemente bem, mais tranquila, sem dor.
Colocamos na maca e vamos levá-la para a enfermaria.

Ela nos conta chorando a surpresa,o susto, pois nunca imaginou estar grávida, foi só uma vez... Tem somente 16 anos... Medo, insegurança, preocupação... O que vai fazer agora ?
Tentamos tranquilizá-la...

Chegamos na enfermaria, colocamos a  mãe menina  na cama, cobrimos e a deixamos com seus pensamentos. Saimos comentando o parto, relativamente  tranquilo e que foi bem sucedido.
GRITOS...

Voltamos correndo...
As dores voltaram...

Tem mais UM!!!


 
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Acontece cada uma...

Enfª Ana Eugênia Loyolla Hollanders


Numa manhã, de plantão em um Pronto Socorro  de grande movimento, mas que estava estranhamente tranqüilo, sem urgências, sem correrias, mas mesmo assim todos trabalhando e ainda contando com o apoio de estudantes de medicina, enfermagem, técnico em enfermagem e outros em seus estágios.
Normalmente, os estágios acontecem de forma segura, organizada, com a supervisão de profissionais responsáveis por pequenos grupos de alunos. Neste dia, estava em estágio uma turma de acadêmicos de enfermagem, iniciando a parte técnica, fundamentos de enfermagem, na sala de medicação.
De repente, uma das colegas de serviço chama nossa atenção para a sala de preparo de medicamentos pois algo estranho ocorria ali. Saímos da sala e café e dirigimo-nos para o local.
Ficamos parados na porta da referida sala, observando o movimento de vários estagiários que preparavam uma quantidade enorme de ampolas  – 80 ampolas enfileiradas, como um exército, em grupos de 20 unidades e  ainda sendo conferidas.
Um contava, outro quebrava ampolas e outro ainda,  aspirava o conteúdo destas, sob o olhar severo da supervisora responsável.
Irresistível não interferir... Como enfermeira responsável pelo plantão, encostada na porta, tranquilamente interroguei a supervisora de estágio:
- “O que estão preparando”?
-“ Lasix”, ela respondeu
- “Quantas ampolas”? Perguntei novamente
- “O que está prescrito, 80 ampolas”, e mostrou-me a prescrição médica.
Conhecendo os plantonistas, e as letras destes, não resisti e questionei outra vez:
- “Você sabe para que serve esta medicação, e o que tantas ampolas podem causar no paciente”?
Resposta: “Vai fazê-lo urinar muito, pois tem pressão alta.”
Outra vez provoquei :
- “Você imagina quanto este paciente vai eliminar fazendo uso de tanta medicação diurética? Pois eu creio que ele vai secar até o cérebro”.
A supervisora ficou um pouco irritada e falou alto:
 -“Estou fazendo o que está prescrito”

Respondi: “Você como orientadora, deveria ao menos questionar e não somente organizar seus alunos para realizar um procedimento não usual, deveria ter conhecimento suficiente para refletir sobre a ação e tomar providencias antes de ensinar”.

Peguei a prescrição e mostrei: prescrito 80 mg de Lasix, o que corresponde a 1 ampola. E completei: “Pense antes de agir, de ensinar. Podemos prejudicar ao invés de cuidar”.
A supervisora saiu do plantão com seus alunos, reclamando da situação.
Não mais a encontrei.
Tomara que esteja estudando.

Acontece cada uma, é incrível...




A Facada

                                     Avenor Augusto Montandon

Fui chamado com urgência ao hospital. Um homem de meia idade tinha sido esfaqueado. Seu estado era muito grave. Os sinais vitais denunciavam um choque hemorrágico.
Entrei direto para o centro cirúrgico onde o paciente estava sendo anestesiado.
A anestesista foi logo me avisando que o caso era grave demais, e que embora estivesse infundindo sangue e vasopressores, a pressão arterial não era detectada e apenas tênues pulsos carotídeo e femoral eram percebidos.
Numa rápida inspeção confirmei as informações passadas pela colega e constatei uma pequena lesão perfuro-cortante, de uns dois centímetros, na região epigástrica (linha média do abdome superior). Não havia dúvida de que aquele ferimento tinha penetrado o abdome e lesado uma víscera ou algum vaso importante.  Enquanto escovava as mãos imaginei que o estômago  teria sido lesado. Ou quem sabe o fígado?  Certamente havia uma hemorragia interna importante que deveria ser contida rapidamente, sob pena de choque irreversível, já iminente.
Ao longo de tantos anos de experiência como cirurgião, eu não tinha quase nenhuma preocupação com as dificuldades que normalmente encontraria  numa  cirurgia desse tipo. Deveria ser rápido e preciso, ingredientes essenciais para conter o sangramento, sob pena de perder o paciente.


Durante os breves instantes em que me preparava para entrar no campo operatório, o paciente parecia perder totalmente os sinais vitais.
Tendo sido treinado em hospital de urgência, não gastei mais do que 1 ou 2 minutos para ter acesso à cavidade abdominal com uma incisão (corte) de uns 20 centímetros na linha média da barriga, acima do umbigo.  Minha surpresa foi muito grande ao constatar que não havia quase nenhum sangue no interior do abdome que justificasse o choque hemorrágico que estava por levar o paciente a óbito. Numa inspeção geral das vísceras, também não pude evidenciar nada que o justificasse!
Alertado pela anestesista sobre a piora do estado do paciente, senti-me pressionado a localizar o sangramento. Só podia ser para dentro do tórax, concluí, estendendo a minha incisão para cima, cortando o osso externo onde se articulam as costelas no tórax anterior, como se procede nas cirurgias de acesso ao coração. Tinha a esperança de poder encontrar numa das cavidades pleurais, um enorme derrame pleural de sangue (hemotórax). Certamente a faca teria tomado o caminho ascendente, penetrando um dos pulmões. Tentaria a hemostasia (conter o sangramento) e, uma vez drenada a cavidade pleural, era só concluir a cirurgia com as suturas dos tecidos cortados, e com a reposição das perdas, o paciente estaria salvo.
Minha surpresa foi ainda maior quando, acompanhando o trajeto que a arma havia tomado, cheguei no.... CORAÇÃO!! Isso  mesmo! Conforme previra, a faca penetrara o tórax e acertou o coração!  O mais falado órgão do corpo, suposta sede dos sentimentos, da afeição, do amor, do sofrimento - havia sido perfurado.
A faca atingiu o ventrículo direito e este deixou extravasar para o seu entorno uma grande quantidade de sangue que, contido pelo pericárdio (tipo de membrana), provocou o que nós médicos chamamos de derrame pericárdio, causando um bloqueio, que constrange os batimentos cardíacos. A perda sanguínea, aliada àquele bloqueio insistia em manter o paciente em estado grave!
Heroicamente o coração continuava cumprindo a sua função, mas, a cada pulsar mais um jato de sangue era jogado fora! Precisava interromper aquele sangramento e, para tal, lancei mão de duas pinças que, devidamente presas nas bordas da ferida, puderam me dar uma trégua para preparar a sutura.
Como já esperava, os batimentos foram se tornando cada vez mais tênues até que pararam.  Aproveitei então aquela providencial parada cardíaca para dar os pontos na ferida da parede do ventrículo.
Tudo isso em menos de 30 segundos! Foram dois pontos em “U”, suficientes para fechar o ferimento e interromper o sangramento. Imediatamente iniciei a  massagem do coração que, entre as minhas mãos, relutou em cumprir espontaneamente a sua missão de bombear o sangue, como se rebelasse contra essa nossa ofensa e intromissão.
Por alguns minutos, espremendo o nobre órgão entre meus dedos pude substituir a sua função, permitido que o sangue circulasse com pressão suficiente para manter oxigenados os órgãos, incluindo o próprio coração. Minutos depois, para nossa euforia, o laborioso centro da circulação reiniciou sua luta contrátil, de inicio meio titubeante, arrítmico, para gradualmente  assumir um ritmo seguro e confiante.
- E aí doutora, dirigindo-me à anestesista, - e a pressão? 
- Tá melhorando! Com mais uma bolsa de sangue vai normalizar. - Foi categórica.
Extenuado pelo esforço e sentindo a firmeza do resultado, conclui a exaustiva tarefa de recompor os vários planos cirúrgicos.
No dia seguinte de manhã, menos de 12 horas do término da cirurgia, conversei com o Sr. José, sobrevivente de uma facada no coração.
-  Bom dia! Sou o médico que te operou!
- Bom dia doutor. Obrigado. Não vi nada. Pensei que tinha morrido! Depois da facada que a Margarida me deu  eu achei que num tinha chance de escapar. Ficou tudo escuro logo depois!
- Quem é Margarida? perguntei.
- Minha mulher -  respondeu constrangido. 
- Sua mulher?
-  Isso mesmo. E continuou em tom de desabafo:
Eu fui receber um dinheirinho na Caixa Econômica de um seguro desemprego, e ia indo pra casa. Resolvi passar num boteco que tem no caminho. e tomei uns tragos. Quando eu cheguei, em casa ela tava me esperano e me enfiou a faca! Num entendi seu doutor. Eu tava até levano um presentinho pra ela!! Ela é boa mas é ciumenta demais -  concluiu.
- Seu Zé, você sabia que a facada foi no coração?
- Mesmo Doutor? Então como é que escapei?
- Sorte seu Zé, muita sorte!!!
Fui categórico...



*****   ***   *****

   Insônia
Ana Eugênia Loyolla Hollanders
Enfermeira



   Estávamos de plantão, no Pronto Atendimento, numa bela e quente noite de sexta-feira.
 Céu sem nuvens, lua como grande luminária a enfeitar o espaço infinito e pontilhado de estrelas. Noite maravilhosa.
Pensávamos que seria tranquila.
Ledo engano...  Acidentes e mais acidentes começaram a movimentar nossa jornada. Acidentes graves, com vários feridos, onde toda equipe se desdobrava na tarefa de atender a todos com rapidez e eficiência, com sincronismo, para garantir o sucesso de nossa luta pelo bem maior: o milagre da vida.
Soros, suturas, curativos, punções, massagem cardíaca e mais massagem cardíaca, corre aqui e  ali  a cada momento. 
Nossa noite foi passando rapidamente, sem um momento sequer para descanso.
Por volta das quatro horas da manhã, ainda lutando em uma reanimação cardíaca de um jovem traumatizado, eis que a porta da sala de urgência é aberta por uma senhora que solicita atendimento urgente.
Não sabendo o que estava ocorrendo, dirigi-me a porta e a senhora (elegantemente vestida) que, apesar de presenciar a atuação da equipe em manobra de reanimação, insistiu no atendimento.
Olhar atônito de todos frente a situação, dirijo meu olhar para o médico a cabeceira do jovem,  com ambu na mão, ventilando-o (pois nosso paciente não assumia seus movimentos respiratórios), e aguardo seu posicionamento. Por transmissão de pensamento, ou, por conhecer o olhar deste, acato a decisão não verbal e retiro-me da urgência levando comigo a insistente senhora.
Dirijo-me ao consultório médico com a suposta paciente e solicito que  fique sentada. Feito isto, recebo das mão do guarda, a ficha de atendimento onde seria anotada a queixa principal e dados vitais para uma rápida avaliação  para relatar ao médico o motivo da urgência.
Neste momento, ao iniciar o inquérito para levantamento de queixas, a paciente solicita permissão para que sua amiga entre no consultório, pois as duas estão com o mesmo problema.
Já estando eu fora da sala de emergência, permito a entrada da segunda paciente e reinicio a investigação e interrogatório conforme protocolo de triagem, conferindo identificação das pacientes, data e hora (05:12 h).
Ao questionar sobre motivo de procura ao atendimento médico de urgência, sou surpreendida com a resposta: 
- Viemos procurar o médico pois PERDEMOS O SONO!
Eu, cansada física, mental e emocionalmente para esta situação, tenho minha ultima surpresa da noite ao responder sem pensar : 
-  E vieram procurar o sono no Pronto Socorro ????

Levantei e voltei a Sala de Urgência...

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                               O  Coronel
                                         Avenor  A. Montandon

O   Coronel João Bastião era um fazendeiro abastado, família grande e tradicional na região. Era um sujeito enérgico cordial e muito caridoso.
No auge dos seus 60 anos aparentava uma saúde de ferro, demonstrada no cotidiano pela disposição com que encarava a administração de seus bens: várias fazendas, que percorria num jipe verde, vestindo um terno de linho cáqui. Seus filhos, já adultos, o ajudavam nas tarefas de supervisão e controle do enorme patrimônio, mas nenhum deles tinha o vigor e energia do pai.
Um belo dia o coronel ficou doente. Relutante, mas sob insistência da família, procurou o médico, o Dr. César, competente e boa praça que gozava de muito prestígio junto ao coronel.
Vários exames. Depois, veio a constatação da necessidade de uma intervenção cirúrgica:
- Coronel, o senhor vai ter que ser operado. - O Doutor foi categórico.
- Que isso doutor! Nunca tive nada, agora é que apareceu esse negócio de mijar fininho...
- Pois é coronel. Não tem remédio a não ser operação. Além do mais, a tendência é só piorar. É também perigoso adiar a operação. Pode complicar.
O coronel coçou a cabeça, acendeu um cigarro de palha, encarou o doutor nos olhos: - Precisa mesmo?
- Não tem jeito.
- Tudo bem, to nas mãos do senhor, que abaixo de Deus, tem sido bom para toda família.
A operação foi um sucesso. mas, era um tumor suspeito. Precavido o doutor encaminhou a peça para exame. Uns quinze dias depois a constatação infeliz: era câncer.
Dr. César reuniu a família e abriu o jogo: - o tumor é maligno, dos piores, a tendência daqui pra frente é piorar.
A família, constrangida, indagou se haveria algo mais a fazer
- Nada. Vamos aguardar. Ele vai passar bem nos próximos meses. Dito e feito. O velho não teve nada e voltou à rotina normal. Seis meses depois, no entanto, o doutor foi chamado. O coronel estava indisposto, amarelo e vomitava muito.
- Icterícia. pensou o doutor com seus botões. E daquelas que não tem jeito. Sem dúvida o câncer se espalhou e já tomou o fígado.
Apesar dos remédios, o paciente piorava dia a dia. A família já pensava no inventário. Um filho apossou-se de uma bota do coronel. Outro levou sua coleção de armas. E, assim foram despojando o coronel dos seus pertences na expectativa de sua morte.
Um dia de manhã o velho manifestou a vontade de comer um lombo de porco com farofa.
A família chamou o doutor para opinar.
- Deixa ele comer. Afinal deve ser um de seus últimos desejos. E o coronel passou bem para surpresa de todos. Noutro dia pediu uma feijoada. Queria assistir ao preparo da refeição no rabo do fogão. Foi atendido e ainda deu palpites no tempero.
Dias e cardápios variados depois, o doutor saía do hospital, quando viu um homem de terno cáqui e cigarro de palha na boca descendo de um jipe verde.
Era o próprio.
O Dr. César se aproximou perplexo:
- Uai, coronel. É o senhor?
- Em carne e osso, doutor. To novo!
- O que o senhor fez para melhorar assim tão depressa? - indagou.
- Deixei de tomar aquela remediada toda.

 E viveu mais 28 anos.......!!!






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MÃE JOANA

                                                                                      Avenor A. Montandon

Zé Precotela. Esse era o seu nome. Era um crioulo muito preto e forte. Tinha uma característica peculiar. Os pés eram enormes. Sapato, só sob encomenda, tanto que só andava descalço.
O Precotela foi criado desde pequeno pelos meus avós na fazenda, onde ajudava como vaqueiro e capinador de roça. Era servil e humilde, resquícios de seus antepassados de escravos e dedicava aos velhos um respeito submisso, quase canino.
Saiu para casar, com a devida licença dos velhos, o “padrim e a madrinha”. Sua primeira mulher morreu de parto do quarto ou quinto filho, já não me lembro, deixando os filhos bem pequenos, principal argumento para arranjar logo o seu segundo casamento com uma crioula aparentemente saudável, gorda e risonha que quando ria parecia ter quarenta dentes na boca. Seu nome era Joana, tinha uns trinta anos quando casou com o Precotela. Dois ou três anos depois já havia aumentado a família em mais dois crioulinhos. Joana andava cerca de duas léguas a cada dois dias, para lavar e passar roupa na fazenda da vovó. Caminhava ligeira por uma trilha nas encostas suaves dos morros que circundavam a fazenda.
Na escadeira levava invariavelmente um filho mais novo, que não podia deixar em casa, pois até a idade de dois ou três anos os amamentava só no peito.
Sagrada rotina anos a fio.
Fazia parte da paisagem ver a Joana com um crioulinho encaixado na cintura, com uma trouxinha na cabeça rumo à sua casa ao final do dia de trabalho. Com o tempo, no entanto, o passo de Joana já não era tão ligeiro. Estava mais gorda (ou inchada) e parava, vez em quando, para descansar.
Descia o neguinho, o assentava sobre o cupim, respirava sôfrega, para depois prosseguir.
Certo dia, bem cedo, o Precotela apareceu na fazenda. Adentrou à cozinha, onde a vovó preparava um tacho para fazer sabão, tirou o chapéu.
- Bença madrinha.
-Bençoe Zé. Que veio você fazer aqui essa hora. Não é seu costume!
-Fiquei preocupado com a Joana, madrinha. Imaginei que ela tivesse dormido aqui hoje à noite com a menina, pois ela não voltou para a casa ontem.

- Que isso Zé?! - disse espantada.
- A Joana saiu ontem, ainda num era cinco horas!
O crioulo ficou branco de susto e assentou num banco à porta.
- Uai madrinha, então aconteceu alguma coisa!
Preocupada vovó mobilizou a todos que saíram, uns a cavalo, outros a pé à procura da Joana com a crioulinha de um ano que estava com ela.
Seguiram o caminho costumeiro de Joana, passaram duas casas de colonos por onde ela às vezes parava, na esperança de encontrá-la. Nenhuma notícia. Aumentou a apreensão.
Quando, depois de muita procura, se esvaneciam as esperanças, próximo a uma vertente ouviram murmúrios de criança. Sobre uma moita de capim, a poucos metros de um enorme desbarrancado, jazia o corpo de Joana. O capim á sua volta estava amassado, denunciando que a criança por ali circundara á noite em volta da mãe morta. Os peitos murchos do cadáver, á mostra....Joana cumprira , mesmo depois de morta o seu instinto de mãe: A criança alheia , brincava a seu lado , saciada com o leite que sugara durante a noite.


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URGÊNCIA EM PAQUETÁ

                                                                   Avenor Augusto Montandon

          Quando eu era menino ouvia muito falar de Paquetá, uma ilha ”paradisíaca” na bahia de Guanabara. Tinha muita curiosidade em conhecê-la.
A oportunidade surgiu quando, já médico e morando no Rio de Janeiro, pude conhecer num daqueles fins de semana ensolarados do Rio. Meus sogros estavam nos visitando e manifestaram o desejo de visitar a ilha. Tínhamos 3 filhos pequenos. A menor, Nicole era ainda um bebezinho de alguns meses.
Findos os preparativos e animados pela expectativa de um passeio muito diferente fomos para a estação das barcas.
A viagem, numa barca de 2 andares, iniciava na praça XV e durava uns 40 minutos.
Ainda me lembro que tive uma grande decepção ao constatar a sujeira da água da bahia, contrastando com a espetacular paisagem que se descortinava nos relevos da cidade. Embora a barca não fosse muito confortável, a travessia da bahia foi muito agradável.
Sogro, sogra , mulher e filhos se deliciando com a novidade. Eu, já acostumado com aquele tipo de transporte, me preocupava com a segurança da turma em meio a uma pequena multidão de turistas e habitantes da ilha que retornavam da jornada de trabalho no continente.
No desembarque constatei que o lugar devia ter sido realmente maravilhoso. Agora já nem tanto pela poluição imposta por uma exploração inescrupulosa e desprovida de um espírito de preservação ambiental. Mesmo assim  Paquetá refletia o deslumbramento que despertara outrora.
Nos acampamos numa pequena praia não muito longe do centro, acomodados à sombra de frondosas árvores com rochedos e ilhotas á sua frente. Acomodamos e alimentamos as crianças, arrumamos o nosso ambiente e procuramos usufruir o programa, a despeito zoeira dos vizinhos, das moscas e do cheiro dos cocôs de cachorro.
Fascinava-me uma ilhota a uns 200 metros dali, com rochas e uns arvoredos, testemunha de áureos tempos de Paquetá, e, movido pelo interesse despertado, resolvi nadar até lá.
A travessia a nado não foi difícil. Talvez tenha feito o percurso nuns 15 minutos. A água era turva e mal dava para ver a um metro de profundidade. Já na ilhota pude apreciar um real isolamento e o silêncio só interrompido pelo canto das aves.
As rochas denunciavam a presença de visitantes que quiseram se perpetuar com suas assinaturas, marcas e desenhos nelas estampados.
Algum tempo depois, sentida a necessidade de retornar, notei que a maré estava subindo muito e havia muita correnteza em direção contrária ao meu caminho de volta. Teria portanto que nadar com mais força e num trajeto maior do que a vinda.
Enchi-me de disposição e me lancei ao mar. Não podia ver absolutamente nada naquela água turva e, conforme previsto, o meu esforço era muito maior para vencer a correnteza.
Mais ou menos na metade do percurso, bati o pé com muita força num recife submerso e, pela dor que senti, pude imaginar o tamanho da lesão. Era um corte profundo de uns 6 cm na borda interna do pé direito, que sangrava profusamente. Sem outra alternativa, redobrei os esforços para alcançar a praia. Finalmente alguns longos minutos depois cheguei na praia causando espanto e apreensão na minha  família que me aguardava. Imediatamente lancei mão de uma fralda para conter o sangramento. Curiosos se aproximaram e ofereceram para ajudar.  Me disseram que na ilha tinha uma precária unidade de saúde, com alguns leitos de semi internação e que dispunha de um interno e um residente de medicina de plantão.
Um solícito banhista, me ofereceu a sua bicicleta para que eu me deslocasse até o pequeno hospital, distante dali uns dois Km.
Sem hesitar, aceitei a oferta.
Vestido sumariamente com calção de banho e camiseta, com uma fralda enrolada  no pé, cheguei á referida unidade. Uma atendente de enfermagem me recebeu e se surpreendeu imediatamente com a minha apresentação.
Disse que eu era médico, trabalhava no Rio, e precisava suturar o meu pé. A moça constrangida disse:
- Doutor, os acadêmicos estão muito ocupados com uma urgência e devem demorar um pouco!
  Eu, desconfortável e preocupado não hesitei:
- Então, por favor me traga uma bandeja de sutura, seringa e anestésico. Eu mesmo vou suturar a ferida!
- mas... doutor?
- Não se preocupe! tranqüilizei.
  A atendente, com  indisfarçável apreensão, me trouxe o material solicitado e, com o pé colocado sobre o joelho esquerdo, fiz a assepsia, infiltrei anestésico na lesão e comecei a sutura. Poucos minutos depois eu tinha vários expectadores, incluindo os dois acadêmicos que haviam terminado o  referido atendimento. Mostraram-se muito surpresos e se propuseram  a me ajudar.
Rejeitei a ajuda sobretudo porque estava por concluir a sutura.
- O senhor faz qual especialidade?....perguntou um deles.
- Cirurgia e obstetrícia, respondi.
- Quem sabe o senhor pode dar uma ajuda pra gente. Nós estamos com uma caso grave aqui. A paciente teve um parto espontâneo na rua e foi trazida para cá.
Está com uma hemorragia incontrolável. Já tentamos fazer o que podíamos e não conseguimos controlar o sangramento.
Ela está chocando,  Só temos mais uma bolsa de sangue para aplicar e vai demorar a remoção para o Rio!
-  E o nenê, perguntei.
-  Ta bem. Pusemos ele no berçário e já está sendo cuidado.
-  Me arranja uma roupa de centro cirúrgico que eu vou dar uma olhada pra vocês, disse.
Devidamente recomposto e já com o pé suturado e enfaixado, fui examinar a paciente.
Era uma paciente de uns 30 anos, e apresentava característico quadro de choque hemorrágico.  Pedi que a colocasse na mesa ginecológica para que eu pudesse examinar.
Havia uma extensa lesão de colo uterino com profuso sangramento e, para piorar, apresentava uma hipotonia uterina (o útero não havia contraído o suficiente), agravando o sangramento. A julgar pelo quadro clinico seria impossível adiar o tratamento da hemorragia, sob pena de perdermos a paciente.
Pedi então o material para o procedimento cirúrgico necessário e com algum sacrifício, graças às limitações do serviço, consegui interromper o sangramento.
Em pouco tempo a paciente já havia melhorado, os sinais vitais eram satisfatórios e a remoção já não era necessária.
Mediquei a paciente e pedi que aplicasse o sangue remanescente com as orientações necessárias.
Tomei um bom banho, despi-me das vestes emprestadas e sob calorosos agradecimentos e manifestações de admiração, montei na bicicleta e voltei á praia onde a minha família aguardava apreensiva. Com razão pois havia demorado umas duas horas.
O entardecer se aproximava. Um lindo crepúsculo era anunciado na bahia de Guanabara quando embarcamos de volta para o Rio.
Durante a travessia pude analisar os acontecimentos em Paquetá e fiquei imaginando se aquele meu acidente não teria sido um pretexto Divino para a salvação daquela mãe. Nessa divagação pude mais me deleitar com a paisagem deslumbrante daquele final de tarde na estonteante bahia da cidade maravilhosa! 
    
****  ***  *****
UM PARTO

Dr Avenor Augusto Montandon
(Cirurgião Santa Casa de Araxá)

                                                    
 Nós estávamos terminando o nosso estagio em obstetrícia, cumprido ao longo de três meses na unidade hospitalar denominada U.I.S.S. – Unidade Integrada de Saúde de Sobradinho,  uma cidade satélite de Brasília, distante uns 20 km do plano piloto.
Essa unidade havia sido construída para servir de hospital escola da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília. Minha turma, completando o quinto ano, era a primeira de medicina da UNB.
Tínhamos tido uma ótima orientação, graças à dedicação e excelência dos nossos professores. Em especial, o nosso estágio na obstetrícia, tinha nos oferecido a teoria e a prática necessárias ao exercício do atendimento em pré natal e parto, natural e cirúrgico. Me sentia muito seguro com a prática adquirida.
Podia ser umas 11 horas da noite e o plantão estava calmo, sendo  supervisionado por duas médicas obstetras. Não havia nenhuma mãe em trabalho de parto e no pós-parto estavam duas puerperas que tinham dado á luz no final da tarde.
Preparávamos para dormir, na expectativa de não sermos acordados na madrugada, quando o enfermeiro da maternidade me chamou no pronto socorro.  Imaginando que tivesse uma gestante aguardando, fui à sala de atendimento obstétrico e não encontrei ninguém esperando.
- Cadê a paciente Geraldo? 
- Não tem paciente não doutor. Tem um senhor no saguão de entrada querendo falar com o médico.
Dirigi-me á entrada e lá estava um senhor esguio, moreno, um pouco calvo, aparentando uns 40 anos. Mostrava-se ansioso andando de um lado para o outro da sala. Falava muito mal o português. Era de origem árabe, e pelo visto, havia pouco tempo que estava no Brasil.
- O Sr. é o médico que vai comigo? perguntou.
- Sim, tomando conhecimento naquele momento de que o atendimento era domiciliar.
- Do que se trata? perguntei e desisti de decifrar a resposta, pois não entendia direito qual era o caso. Deduzi que sua mulher teria tido um parto em casa e eu deveria acompanhá-lo na remoção da parturiente e o nenê para o hospital. O Sr. Mohamed (esse era seu nome), insistiu que fosse com ele no seu carro e, a meu pedido, a ambulância nos seguiu.
Não era distante. Um prédio de três andares, simples com uma escada, íngreme  estreita e escura. O apartamento ficava no terceiro andar. 
O Sr. Mohamed me convidou a entrar, gesticulando, como melhor forma de comunicação. Na simples e pequena sala algumas pessoas cochichavam entre si.
Fui conduzido a um quarto onde repousava uma senhora obesa  e grande que se encolheu debaixo de vários cobertores com a minha presença. Pedi que saíssem as solidárias senhoras presentes ao lado da cama. Uma delas, franzina e impassível,  que se identificou como parteira, permaneceu no quarto.
– Boa noite doutor, disse. Esse tipo de parto eu não faço, mas se o senhor quiser eu posso ajudar. Já apreensivo com as condições do ambiente e a situação inusitada  que estava se revelando, pedi que descobrisse a paciente, que à menor aproximação se retraía mais. Descoberta a paciente já pude deduzir sobre a gravidade da situação obstétrica em que me encontrava. Um cianótico (roxo) pesinho de nenê entre as obesas coxas anunciavam um parto podálico (apresentação invertida). Pelos meus conhecimentos recentemente adquiridos, não era um procedimento que pudesse ser feito em domicilio e quase sempre culminava em cesariana, por implicar alto risco para o nenê e para a mãe.  Recobri então a  amedrontada mãe e mandei chamar o marido:
- Sr. Mohamed, temos que levar a sua senhora para o hospital. Não dá para fazer o parto aqui. É perigoso para a mãe e para o nenê.
- O senhor não é médico?, falou com o português difícil de entender.
- Mais ou menos, respondi um pouco hesitante.
- Pois então faça o que é preciso aqui pois ela não fala português, nunca esteve em hospital, e se recusa a sair daqui!
O tom foi de ameaça e senti que a coisa estava mesmo ruim. Mesmo se insistisse em transportar a paciente, imaginei como seria dificil descer aquela paciente enorme, com o feto em sofrimento, por aquela escada que mal cabia uma pessoa andando!? Para agravar minha apreensão eu estava sendo fulminado pelos olhares das pessoas presentes!
Prevalecesse o bom senso e eu fugiria dali. Dominado pela autoconfiança e a ansiedade por tentar a solução do caso, enchi-me de ânimo reforçado pela oferta de ajuda da parteira que estava determinada a ser minha auxiliar na solução do impasse.
Pedi então uma “intérprete” e fui à luta.
- Abra as pernas!!!
- Respira fundo, faz força! Abre mais! -  imediatamente traduzido pela  intérprete que me ajudava na comunicação.
Numa sucessão de manobras, bem aprendidas nos manequins de ensino, puxa daqui, puxa dali, aperta acolá, depois de muito suor, sangue e cocô o nenê saiu!
Era uma menina enorme, devia ter uns 4,5 kg. Como era esperado, nasceu muito mal; completamente sem reflexos cianótica (roxinha) e com parada respiratória...
A intérprete descompensou: aos berros de “- está morta!  -morreu!  -meu Deus!”
-Tá morta coisa nenhuma, cala essa boca e ajuda! reagi.
Quando me preparava para a respiração boca-a-boca, imediatamente após a limpeza da garganta da nenê com um pedaço de pano, a recém nascida inspirou profundo!
Que alivio!
- Isso filhinha, mais uma vez !
- De novo! Isso mesmo, vamos lá, a vida lhe sorri!
E ela foi ficando com a cor rosada, as mãozinhas se dobraram, os reflexos surgiram e o choro alto se fez ouvir em todo o apartamento!
- Graças a Deus, conseguimos,... desabafei.
As expressões mudaram. Surgiu um cafezinho quente, um tapinha no ombro dado por algum titio... Alegria geral, até da mãe, que suada e trêmula, balbuciava sorrindo algumas palavras por mim desconhecidas.
O pai, satisfeito, orgulhoso, veio ao meu encontro quando eu acabava de enrolar a criança nos panos para levá-la ao hospital, e enfiou um maço de notas no bolso do meu  jaleco.
- O senhor me desculpe, Sr. Mohamed, mas isso eu não posso aceitar, falei devolvendo o dinheiro.
- Isso não é pagamento não doutor. Isso que o senhor fez não se paga, respondeu o árabe ajudado pela intérprete. – Isso é apenas uma demonstração de gratidão. O senhor aceita e a gente não briga! ....sendo categórico.
- Tá bem, tenho que levar a nenê para o hospital para ser examinado!
- Eu levo o senhor. A ambulância já voltou para o hospital!
Todo sujo de sangue,  com a recém nascida no colo, cheguei no hospital as três horas da manhã. Despedi-me do senhor Mohamed, e logo na entrada do pronto socorro enfrentei uma recepção hostil, com ameaças de punição, por parte das médicas responsáveis pelo plantão.
A despeito do cansaço e das ameaças, com a sensação do dever cumprido, fui deixar a nenê no berçário para ser limpa e examinada.
Dois dias depois fui fazer a visita domiciliar - uma obrigação imposta pela faculdade - com o objetivo de analisar a situação do paciente atendido, no seu contexto familiar.  A menininha já tinha recebido a alta hospitalar,  felizmente sem nenhuma seqüela, a despeito do trauma obstétrico.
Fui muito bem recebido pela família e conduzido ao quarto onde a mãe repousava sorridente ao lado da recém nascida. A  pequena Hamda, vestida com coloridas vestes, ostentava na cabecinha  um turbante vermelho, brincos nas orelhas, uma exuberante  maquiagem no rostinho redondo, e esboçava um sorriso como se quisesse me agradecer por te-la ajudado a vir ao mundo.



PALAVRAS FINAIS

Que bons ventos te tragam sempre...
e que bons ventos te levem...

mais leve, feliz,

tranquilo e

em paz!

Grande abraço!

Ana Eugênia


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