Avenor A. Montandon
João era um roceiro que carregava todos os dias a filha de sete anos, muito franzina, na distância que separava sua casa da escola, antes que assumisse as duras funções da capina que tocava “a meia” com o dono das terras. A botina mateira comia o cascalho com disposição e os braços fortes e rijas pernas pouco ressentiam nos 20 minutos de caminhada com a pimpolha nos ombros. A farinha de milho com café forte e uns biscoitos de Marieta, a mulher, eram sobremaneira salutares e ofereciam a energia para as tarefas do dia.
Súbito uma dor, um cansaço no peito, uma parada para se recompor. a interrogação preocupada: o que estaria acontecendo?
- “Friage”, talvez. Ontem, mesmo à noite, fechando as galinhas, tomara água da bica, muito fria... é, era isso, só podia ser. Passa logo. Afinal, com seus 5 filhos menores seria muita “desgraceira as carnes enfraquecê”. Precisaria de forças ainda por longos anos e a família seria criada com muita alegria e sem fome. Longe a idéia ruim de adoecer agora quando o Doutor mais próximo está a mais de 10 légua e com tanto compromisso assumido...
Menos entusiasmo, mais vontade; e Zeca foi deixada mais uma vez na escolinha da Dona Lúcia, a boa professora, viúva, dedicada, residente ali, que, para felicidade dos moradores da região, garantia a alfabetização dos filhos. João pensava justamente que já seriam 2, a Zeca e o Pedrinho. Eles não seriam como ele que não tivera a oportunidade de aprender a ler e escrever. Tinha fé em Deus que todos seriam de leitura.
Já na roça, cumprimentou os amigos companheiros de mutirão, e tomou a tarefa. Não se sentia muito bem. Achava que a botina machucava o pé: tava mais apertada? O peito já não doía, mas exigia mais “arfar”.
Assaltava-lhe a apreensão de que algo de novo e triste estava acontecendo. Até o Joaquim, compadre e companheiro de sol a sol, notara. João disfarçava e desculpava: teria tido um mal jeito nos bofes, coisa de pouca valia. Num dia, com chá e fé tava bom.
Os dias passaram. Procedia o temor de João: não conseguia mais trabalhar como antes quando tirava sua tarefa antes que todos. Agora, só com esforço e longas interrupções, conseguia a metade da produção.
Marieta aconselhava o João: - pega o cavalo, leva boa matula e uns cobrinhos que a gente economizou da safra. Vai à cidade e consulta o Dotô.
João relutava, embasado no chá de erva que o Sinhô Preto lhe fizera... Mas, de pouca valia. Cabisbaixo, apreensivo, tristeza nos olhos, beijou Marieta na testa; coçou com as grossas mãos o coco arrepiado do caçula no colo da Marieta e titubeante, montou, Joaquim, fiel o acompanhou.
Uma cavalgada de dois dias ! Estiveram ali há uns 15 meses atrás quando foi a mando negociar a safra. A cidade lhe parecia maior e mais movimentada. Trazia no peito, um aperto, uma angústia, não sabia precisar... Sentia fraco. não fosse Joaquim, nem teria chegado com tanta dificuldade de permeio. Foi chuva e foi sol. Cada passo do cavalo era um tormento no ventre. Força mesmo arranjava quando lembrava dos meninos e de Marieta. A esperança, a vida, a sobrevivência dependiam dele. Seria doído demais ver o gordinho Rui de dois anos ficar franzino por falta dos braços do pai. Dor demais seria ver a Zeca sem poder ir à escola. Assim, arranjava mais forças e prosseguia. Tinha fé em Deus e no Doutor que ficaria bom e voltaria com coragem de sempre e confiança no futuro.
- João Aparecido dos Santos!
Chamou a moça no corredor onde João, ao lado de Joaquim, já aguardava umas 2 horas. Enfim chegara a hora. Ajudado pelo amigo, adentrou à sala do médico; nunca tinha tido aquela experiência antes, aliás, quando menino, seu pai o teria levado a um doutor prático que ali mesmo, naquela cidade tinha morado.
O Doutor, ainda moço de uns 33 anos talvez, claro, cansado, mas risonho o atendeu:
- Sr. João, como vai o senhor? Vamos assentar. O que o traz aqui?
E, João, menos contraído diante da receptividade daquele doutor, contou sua história.
Não era exatamente um caso da sua especialidade, cirurgia geral. No entanto, à simples anamnese chegava-se fácil ao diagnóstico: era o início da manifestação cardíaca da doença de Chagas, endêmica naquela região onde João morara toda sua vida.
“A maldição do roceiro” que geralmente ao atingir entre 35 a 50 anos começam a manifestar os sintomas; pé inchado, cansaço e progressiva incapacidade aos esforços que os impossibilita ao duro trabalho na roça, até que um dia é encontrado morto numa trilha entre sua morada e a roça.
A história de João era típica; seu pai como ele, trabalhador de roça, criara a família de nove filhos num barraco de pau e adobe, sem caiação e teto de palha. Ainda muito pequeno, João se lembrava, acordara à noite sendo picado pelo barbeiro ou chupão como era conhecido, um inseto preto com umas pintinhas nas asas.
Foi João quem encontrou seu pai caído perto do rego d’água numa fria tarde de julho, uns vinte anos atrás. Tinha na época menos de 14 anos e sozinho carregou seu pai já morto, para o barraco. Desde então, sendo o mais velho dos homens, ajudou sua mãe, Dona Sebastiana, a criar os irmãos menores.
Os exames confirmariam a suspeita; um pouco anêmico, pernas inchadas, extrassistolia, bradicardia. Um RX de tórax e um exame de sangue seriam suficientes para fechar o diagnóstico, além do eletrocardiograma. Enquanto preenchia os pedidos, o Doutor foi tomado de uma angústia:
Até quando os homens como o João, sujeito bom, honesto, simples e trabalhador, continuaria sendo vítima de uma doença erradicável pela simples dedetização de suas casas? Lembrava-se de uma frase que seu professor de medicina sempre repetia:
“É preciso tirar o homem da casa do barbeiro”- numa alusão às péssimas condições de habitação do homem do campo.
- Quanto tempo vou ter que ficar por aqui dotô?
- Uns 2 dias espero. Acredito que até depois de amanhã o senhor possa voltar para sua casa. É preciso, no entanto, que você volte aqui de vez em quando para que possamos fazer novos exames e mudar os remédios. Vejo você depois.
João estendeu a mão grande e calejada: - Muito obrigado! Deus te ajude Dotô.
- Amém.
O Doutor levou a mão às têmporas, começando a pintar os primeiros cabelos brancos, rabiscou um pedaço de papel à sua frente, sentiu-se deprimido pela impotência da medicina diante de certas doenças: cardiotônicos, diuréticos, marca-passos, transplantes...
Paliativos que fomentariam ilusões de vida normal...
Nada mais do que ilusões!
João voltaria bem melhor, teria 5, 10 ou até 20 anos a mais de vida e teria o mesmo desfecho do pai: a morte súbita numa fria tarde de sol aos pés de um florido manacá...
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